Friday, December 26, 2008

O Diário Do Contra

Romance pra mim nunca foi de grande importância. Minhas outras atividades bastavam. Sempre fui feliz sem garota. Jogo futebol, videogame, converso com meus amigos, janto com a família. Está ótimo assim.

O problema é que a sociedade te impõe uma cacetada de coisas. Meu pai me disse isso um vez. Achei a frase interessante, mesmo sem saber direito o que significava. Dois meses depois entendi o significado das palavras do papai.

Meus amigos começaram a beijar garotas. Alguns beijavam mesmo, outros mentiam. Até os que beijavam de verdade mentiam, inventando alguns detalhes estranhos.

A verdade é que nunca me interessei por essa coisa de beijo, namoro, romance. Não, não sou viado. Sou criança.

O pessoal anda muito precoce. Querem adiantar todas as coisas. Não sei por quê. Não tenho pressa. Papai tem quarenta e oito anos e disse que ainda não fez muitas coisas na sua vida. Eu tenho menos que o terço dessa idade. Posso esperar. Mas meus amigos não querem.

       *                            *                             *

Se existe alguma coisa que não me encanta é faculdade. Dizem que, quando se chega a esse rico ambiente de estudo, a vida muda. As decisões, a partir desse momento, são tomadas por você e a autonomia é, finalmente, conquistada.      

Papo furado. Autonomia ninguém te dá assim de um dia pro outro, como se, juntamente com o diploma de conclusão do Ensino Médio, recebêssemos o diploma de obtenção da autonomia.

Autonomia é uma conquista gradual e íntima. É preciso se dar autonomia. Você se liberta de si mesmo. Não são seus pais ou seus professores que a concedem. Se você espera conquistar autonomia quando chegar à faculdade, provavelmente é uma das pessoas que nunca a conquistará.

Não é preciso faculdade para se aprender a ser um profissional. As pessoas deveriam lançar-se no mundo e fazer o que bem entendem por um tempo. Pensar-se. Parar por dias, meses, ou anos, para conversar com o espelho.

Cada um tem seu tempo.

O Homem que se conhece é o melhor profissional. Sabe seus limites. Sabe como se usar. Não em uma relação de exploração, mas um uso gratificante. Um uso que dignifica. 

Como impor a toda uma juventude a escolha da profissão em um mesmo momento? Alguns pouquíssimos, bichos estranhos, estão preparados àquela hora. E o resto? Pra onde vai? Pra faculdade, feliz da vida, obter sua autonomia.

Independência é uma conquista pessoal. Você se liberta. Ninguém mais pode te libertar, se não você.

Se a decisão coubesse só a mim, estudaria por conta própria. Pesquisaria por conta própria. Aprenderia por conta própria. Sem ninguém para limitar as apostilas que eu deveria ler. Da página 5 à 57. Você vai ler o capítulo 23 do Capital. Por conta própria não há limite. Não há cadeira.

Nunca me esqueço de uma frase que meu pai um dia me disse. O problema é que a sociedade te impõe uma cacetada de coisas.  No momento, assim, da conversa, não entendi nada, mas aquilo me bateu como um sino, que sacode a consciência. Acho que, mesmo sem compreender com clareza, absorvi o sentido daquelas palavras.

Mas papai quer que eu faça faculdade. Agora.

            *                            *                             *

As pessoas julgam que eu sou bem sucedido. Acho que é porque eu tenho boa casa, bom carro e uma família bonita.

Mas ando um pouco frustrado e não me sinto bem sucedido.

Quando era jovem gostava de escrever. Passei o Ensino Médio escrevendo. Eu tinha ritmo, tinha jeito pra coisa. Queria ser escritor. Não queria fazer faculdade. Os livros e a vida iam me ensinar tudo. Porque a escrita nenhum professor iria me ensinar, era assim que eu pensava. Se eles soubessem como escrever, estariam escrevendo, não lecionando.

Eu era cheio de ideais.

Meu pai me obrigou a fazer faculdade de direito. Eu desaprendi a escrever.

Quando era pequeno não queria beijar ninguém. Meus amigos me obrigaram. Eu nunca beijei direito.

Mesmo obedecendo a ordens alheias a contra gosto, me julgava independente e livre. E acreditava nisso porque tinha certeza de que me conhecia muito bem. Acreditava que a única forma de se obter autonomia era através do autoconhecimento. Era muita inocência, não era? Se você quiser ser livre, mesmo, precisa, além de obter o autoconhecimento, não acatar as ordens que te desagradam. Não acate. Nunca.

Eu nunca fiz o que queria da minha vida. Sempre obedeci a tudo e a todos, mesmo discordando das decisões.

Eu admito: me arrependo do que fiz.

Hoje eu falei pro meu filho: O problema é que a sociedade te impõe uma cacetada de coisas. Ele não entendeu.

Daqui a alguns meses vou conversar com ele pra explicar melhor.

A gente coloca no filho o reflexo do que queria ser. 

             *                            *                             *

Conversei com o garoto sobre aquela frase, mas ele não deu bola. Entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Ele já beijou algumas meninas. Está orgulhoso.

Não sei se eu deveria estar tranqüilo por meu filho não portar a mesma doença que eu – a da negação - ou lamentar por não ter a possibilidade de viver de novo através do moleque.

Posso tentar mostrar a ele que não é preciso obedecer a tudo que dizem e que a verdade está bem longe daqui.

Ele provavelmente não vai ouvir.

Mas em uma coisa podemos ser parecidos. A vida pode frustrá-lo.  

Talvez ele tente engolir tudo que a sociedade mandar, mas não consiga digerir. E fique pobre. E não tenha o carro do ano - que eu tenho - a casa dos sonhos - que eu tenho - e a família bonita - que eu tenho.

O Destino me sacaneou. E sinto que, infelizmente, vai sacaneá-lo, também. Ao avesso, mas vai.  

1 comment:

Rodrigo said...

assustador. não sei se sou eu, mas...