Aquela maldita psicóloga insistia em afirmar, em aforismos contestáveis, que carrego traumas homéricos da minha infância. Nunca me consultei com uma espécie dessas. O grande problema é que ela dorme ao meu lado, tornando as consultas supostamente despretensiosas apenas adiáveis. Sempre havia uma intenção maquiavélica escondida nos cafés da manhã.
Por sorte, resta-me o suspiro necessário para terminar o que devo. Com a nostalgia de um recém-adulto que completa seus vinte anos; ou um recém-casado ao se imaginar pelo resto da vida com a mesma mulher; sentirei falta das noites de insônia, calculando, descalculando, conspirando, matando e morrendo em mim mesmo.
O homem, ainda despenteado, admirava seus traços castigados no espelho, balançando a escova inconscientemente.
Proferia um discurso improvisado para si mesmo, despertando os instintos primitivos necessários para realizar o que prometera.
Admito que passou – displicentemente – a idéia do arrependimento. Mas não. O que farei nos próximos minutos fará de mim um homem melhor.
Fechou os olhos. Contido em uma lenta vertigem balançou para frente e para trás. Apoiou os braços nas paredes e bateu a cabeça contra a parede.
Ergueu-se novamente, despenteado, para interromper o fluxo da água.
Ainda tonto, girou a torneira e caiu para trás.
Erga-se. Erga-se.
Os dedos transpassaram o interruptor e com a mão trêmula fechou a porta. O ambiente agora era perfeito.
Na cama repousava, em sono real, sua presa. Linda. Estirava-se no rodamoinho de travesseiros e cobertores, desenhando posições instigantes, com as pernas e os braços. O cabelo negro se espalhava pela face, deixando apenas os traços mais sensuais à mostra, enquanto as pontas cobriam partes do busto, singelo. Por sorte, o decote de seda permitia visões encantadoras abaixo do pescoço.
As pernas se entrelaçavam exaustas, e o homem admirava aquilo tudo com ar de criador. Não seria tão simples. Ele teatral. Exibido. Excêntrico.
Caminhou lentamente até a cama e sentou-se no vão das suas pernas. Acariciava sua face lentamente, e cantava para si mesmo. Eufórico.
Vem dormir.
Sem sono.
A mulher continuou a dormir.
Carla. Por que o velho?
A garganta secou e os olhos se abriram por instinto.
Do que você está falando? Vem dormir.
Fechou novamente os olhos.
Olha pra mim.
Fingiu inconsciente. O homem atirou-se em cima dela e distribuiu beijos por todo o corpo.
Você ta doido, Chico? Vamos dormir. Eu to muito cansada.
O homem ignorou a tentativa de corte e prosseguiu, deslizando a mão pela seda nas pernas
* * *
Satisfeito, agora? Podemos dormir?
Há quanto tempo você não passa a noite acordada?
Muito, mas tenho certeza de que não vai ser hoje.
Ah, Carla. Tenho tanta saudade de você.
O que aconteceu hoje? Nós moramos juntos há cinco anos.
Eu disse que eu tenho saudade de VOCÊ. Não disso aí.
Isso aí o que?
Esse troço que você virou. Esse bicho que tomou seu corpo.
A mulher levan... ah, a mulher, sim, virou bicho.
Quem é você pra falar que eu virei “isso aí” ?O que você é, Chico? Me diz? NADA! Você não é nada! Um gordo inútil, que dorme o dia inteiro, e quando eu chego do trabalho vem falar pornografia ao pé do ouvido.
O homem permaneceu sereno.
Por que o velho?
Que velho!?
O homem sobrepôs uma leve arrogância por cima da voz tranqüila.
Por que o velho?
Você ta ficando maluco?
O homem se levantou e sentou na cadeira, em frente à cama. Acendeu calmamente um cigarro, enquanto a mulher olhava tudo atordoada.
Olha aqui, Carla. Eu sugiro que você não fique tão nervosa. Deita na cama, e me ouve por alguns minutos.
A mulher se levantou histérica, e ensaiou sair do quarto.
Por favor, meu amor. Deita e me ouve.
Algumas poucas lágrimas escorreram, e a mulher deslizou sobre a porta, caindo no chão com os braços sobre as pernas.
Aí está bom. Não sei se eu comecei a dizer, o que deveria, então vou do início da história...
1 comment:
muito foda, apesar do texto narrar uma quase-....
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