Tuesday, July 29, 2008

A VILA - PARTE I

O gigante permanecia inquieto com as anotações na mão, vasculhando alguma informação ao seu redor.
As pessoas seguiam desconfiadas.
Nunca haviam visto aquela figura estranha.

Era uma rua arborizada, movimentada, porém silenciosa. Tinha um tom cinzento proveniente das vidas amargas de seus moradores. Há muito tempo não se sorria em respeito ao passado.

Eram aproximadamente 27 casas, do lado esquerdo da calçada, por onde passavam todos os transeuntes. Na parte direita, olhando do início da subida (era uma rua íngreme), havia uma pequena marcação, e o abismo.
A marcação delimitava até onde os moradores poderiam transitar. Depois da listra vermelha era expressamente proibido seguir adiante.

Nem sempre fora assim. Muitos anos antes não exista linha, medo, coisa nenhuma; o abismo era só um abismo. Mas ao passado retornaremos depois. Antes vamos ao que importa do presente.



* * *

Euclides acordou encharcado, como de costume, às 4:14 da manhã. Já fazia vinte e cinco anos que isso se repetia involuntariamente, sem despertador, obrigando-o a adquirir algumas manias adicionais.


Manias Adicionais de Euclides:
1) Abria os olhos e pedia a alguma força maior que, ao olhar o relógio, não se deparasse com o número que o atormentava. Em vão. 4:14. Sempre estava lá.
2) Findada a parte espiritual, levantava-se rapidamente e começava a ouvir uma narração em sua cabeça.
3) Pegava um papel e uma caneta e imaginava meios de devolver a alegria àquele povo.
4) Saia à rua, aproximadamente às 6:00 para conferir se havia alguma mudança, mas o vilarejo sempre permanecia o mesmo.
5) Retornava à casa e seguia até a varanda do sobrado, onde permanecia o resto do dia observando o movimento da calçada e procurando um esboço de sorriso.
6) Às vezes chorava.

Euclides cumpriu a primeira mania inicial e começou a ouvir a narração em sua cabeça. Era uma voz grave e acentuada dizendo liricamente tudo que o homem estava preste a fazer. Já havia se habituado com coisas do tipo “Foi nesse instante que Euclides subitamente enroscou seu pé no tapete e perdeu o equilíbrio, tombando como que maduro no chão”. E assim acontecia.
Estava se levantando quando algo inesperado quebrou a rotina. Os ouvidos até doeram com o som da campainha que não tocava há vinte e cinco anos.

* * *

- Com licença, a senhora poderia me informar onde fica esta casa?

A moça seguiu sem esboçar uma mínima reação além de medo. Os braços desproporcionais e a estatura avantajada não favoreciam uma recepção cordial por parte do vilarejo.

- Com licença, senhora. Eu preciso muito encontrar este lugar.

O gigante já havia chegado à vila há quarenta minutos, mas fora absolutamente ignorado por todos os moradores que passaram. As informações que recebera sobre o local não coincidiam com as marcações escritas nas 27 casas.
A alguns metros avistou uma pequena garota pálida, estranhamente diferente das outras pessoas. Partiu em sua direção com passos desregulados, mas a menina nem sequer apresentou medo ou desviou os olhos. Sua naturalidade espantou o gigante.

- Com licença, a senhorita poderia me informar onde fica esta casa?

A moça olhou as inscrições na enorme mão do homem e balançou a cabeça negativamente.

- Você sabe o nome do morador?

O gigante enfiou-se nos bolsos do paletó e, após retirar uma chave e um retrato, encontrou um papel. Franzindo os olhos verdes, disse lentamente:
- Euclides.

O semblante de Maria transformou-se por completo e as palavras embaralharam.
Correu.
O gigante, sem reação, ficou vendo a garota desaparecer aos poucos.

* * *

Euclides era mais racional que emotivo e possuía um grande controle dos batimentos cardíacos. Ao ouvir aquele zunido, entretanto, perdeu o ritmo da pulsação e seu coração só não saiu pela boca porque a narração disse: “Euclides respirou fundo, acalmou-se, e de forma elegante foi receber quem batia à sua porta”.
E assim ia o fazer, quando a voz que o guiava cessou e o deixou solitariamente perdido.
Encabulado, desajeitado e quase desesperado, segurou a maçaneta e abriu a porta.
A garota sem bem o cumprimentar desferiu-se sala adentro e começou a gritar com o homem de quarenta e três anos que nunca havia a visto.

- Ele está aqui! Ele está aqui!

Euclides permaneceu estático.

- Você não entende? Ele chegou!

Nem um pio.

- Euclides! O Homem sobre quem você havia falado!

- Quem é você?

- Maria... Nada familiar?

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