Sunday, October 12, 2008

A VILA - PARTE III

Já fazia três meses de suspeita que Marcos, o escritor, não estava muito bem. Passou a falar sozinho, olhar fixamente para pontos aleatórios nos quais se demorava vários minutos e, mesmo quando alguém o chamava, permanecia estatelado.

Isso só às vezes. Depois voltava ao normal. Mas quando acontecia era tão estranho que os amigos passaram a estar sempre alertas a alguma alteração comportamental de Marcos. O incomodava.

Euclides, um dia ele disse.

Como?

Deixa pra lá.

E deixaram. Infelizmente deixaram.

* * *

Maria tinha poucos anos quando soube da notícia. Era muito nova para compreender a gravidade do acidente.

Estava brincando de bonecas quando a mãe, chorando, entrou no quarto e disse vem aqui filha a gente tem que sair pra visitar o papai.

Por quê?

Ele ta machucado.

E ao chegar ao hospital, ainda que encontrando um pai petrificado com os olhos saltados de tanto desespero e medo, encarou a situação com naturalidade. Maria era fria.

Julia, você não entende? Foi o gigante. A culpa é dele! Disse Marcos para a mulher.

Essa frase soou estranha para os ouvidos da pequena Maria, assustada com a culpa de um gigante. Por muitos anos tentou entender o que seu pai quis dizer com aquilo, mas só depois de adulta conseguiu descobrir.

Fica calmo, Marcos. Fica calmo. Disse Julia acariciando os cabelos ralos do marido.

Euclides.

Quê?

Nada não.

* * *

Horas antes Marcos acordou encharcado. Pressentiu que não seria um dia qualquer. Levantou-se e mirando o espelho, disse: Euclides, o que será que acontecerá hoje? Olhou para a porta, onde aparentemente não havia ninguém e perguntou: e você, o que acha? O homem alto, de olhos verdes, não respondeu.

A mulher, desconfiada, mas sonolenta demais para argumentar, gritou da cama: Você ta falando sozinho?

Foi ignorada.

Marcos seguiu para o trabalho e, ao fim do dia, quando parecia que, ao contrário das expectativas, tudo corria bem, surgiu o ímpeto de fugir.

Abandonar uma vida que lhe era morna e desinteressante.

Livrar-se de um povo que lhe parecia atrasado e ignorante.

Marcos sabia que algo ia dar errado. Mas acreditava no destino e não iria fazer nada para evitar. Pegou o elevador, desceu à garagem, girou a chave do seu velho Monza vermelho e seguiu direção a seu caminho.

Talvez tenha sido um sopro de vida. Uma brincadeira de algum dos controladores da engrenagem entediado. Um dos estalos que param o tempo, jogam a ampulheta para o alto, e, depois de cambelar no ar, caí, toda destrambelhada deixando tudo de ponta cabeça.

Marcos perdeu o controle do carro.

Foram sete no total.

Sua vida nunca mais foi a mesma.

* * *

Vinte e cinco anos depois.

Maria andava pelo Hospital, esperando para poder entrar no quarto do pai, quando foi abordada por uma figura estranha. Em poucos segundos imaginou quem poderia ser mas, ainda que receosa, agiu com naturalidade.

- Com licença, a senhorita poderia me informar onde fica este quarto?

O homem alto, de olhos verdes, mostrou-lhe a palma da mão, onde havia alguns números escritos em uma letra quase ilegível. Maria balançou a cabeça negativamente e após um tempo de espera, perguntou:

- Você sabe o nome do morador?

Ele retirou um papel do bolso.

- Euclides.

Maria virou-se e correu, ansiosa, para encontrar seu pai.




- Posso falar com ele?

- Pode, mas não houve nenhum sinal de melhora.

- E o que vocês vão fazer?

- Ainda estamos estudando o caso.

- Você acha mesmo que ele enlouqueceu?

- Que pergunta é essa, Maria?

- Eu sei, mas, e se não for nada daquilo?

- Eu entendo que seja difícil aceitar que seu pai tem essa doença, mas...

- E se ele não estiver louco?

- Entra lá, Maria. E toma cuidado pra não chamá-lo de Marcos. Ele deixa bem claro que quer ser chamado de Euclides. Quando é contrariado o quadro parece piorar.

- Você viu um homem alto, de olhos verdes, andando por aqui?

- Maria! Para com isso! Entra logo lá.

A imagem de Marcos já não chocava a mulher. Agora Maria o entendia. Sem bem o cumprimentar desferiu-se sala adentro e começou a gritar com o homem de quarenta e três anos que parecia nunca tê-la visto.

- Ele está aqui! Ele está aqui!

Marcos continuou escrevendo suas anotações, sem desviar o olhar.

- Você não entende? Ele chegou! Ele está aqui!

O homem não se moveu.

- Euclides! O Homem sobre quem você havia falado!

- Quem é você?

- Maria... Nada familiar?

Marcos abandonou o lápis e olhou para a mulher.

- Eu entendo, pai! Eu te entendo!

- Você está louca, menina.

- O gigante, pai. Eu também consigo ver. Ele está aqui.

- Doutor! Doutor! Doutor!

O velho começou a gritar desesperadamente. Enquanto esperava o médico atendê-lo cochichou para Maria:

- Esquece essa história. Esquece antes que isso te traga muito problema.

- O que houve, Euclides?

- Leva a menina embora.

- Pai! Eu não to louca!

- Leva a menina embora.

Maria foi carregada para fora, enquanto o homem de olhos verdes parado à porta observava tudo com tristeza. Marcos o encarava com reprovação.

- Deixa a menina em paz.

Abaixou a cabeça e continuou a escrever a história de sua vida da forma que só ele vira. Via a Vida como Vila. Uma das folhas caiu no chão e o homem à porta, sem hesitar, adiantou-se para ler. A primeira frase já o assustou.

“O gigante permanecia inquieto com as anotações na mão, vasculhando alguma informação ao seu redor.”

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