AMIZADE

-Sabe aquele faxineiro que fica no final do corredor?

-Sei.

-Com cara de mau, não deixa ninguém passar para beber água.

-Sei.

-É um babaca.

-Por quê?

-Porque acha que manda na gente. E se sente importante pra cacete impedindo os alunos de beberem água.

- Não acho que ele seja babaca. É o único momento em que ele tem o poder de mandar em alguém.  

- E daí? Isso justifica alguma coisa?

- E daí? Você, por exemplo, não quer ser um cara bem sucedido, ter poder, mandar nas pessoas?

- Quero ser bem sucedido. O resto é conseqüência  

- Conseqüência que seria bem confortável, né? Do mesmo modo que você quer ter poder, o faxineiro também quer. Mas na humilde realidade dele, ali é uma oportunidade de ostentar poder. Então ele manda, de cabeça erguida, nos playboyzinhos que passam todo dia por ele com desprezo.

- Ah, vem com seu discursinho, vem.

- Discursinho o que?

- Sabe o que eu acho? Você é uma porra de um hipócrita.

- Ah, eu sou hipócrita?

- É. Porque você sempre vem com seus discursos bonitos de quem reflete sobre os problemas da sociedade e vê a situação por ângulos distintos. Mente aberta. Fala fala fala. E suas atitudes? Você é o mesmo playboyzinho que passa por ele com desprezo.

- Quem disse isso?

- Vai dizer que não?

- Vou sim! Muito pelo contrá...

- Ah, já sei. Você passa pelo cara com aquele sorriso simpático e o cumprimenta todo dia. E acha que nesse gesto se aproxima pra cacete do povão. Se distancia pra caralho da “burguesia” que você condena. Resolve uma porrada de problemas sociais com a porra de um aceno e um sorriso amarelo.

- Se você se acha superior demais que a porra do faxineiro para comprimentá-lo tudo bem. Agora não vem achar que quando eu faço isso é por hipocrisia só porque na sua cabeça é contraditório tratar um pobre com respeito.  

- Hipocrisia! Você não cumprimenta por espontaneidade! Você cumprimenta o cara porque acha que está fazendo um grande gesto, exercendo sua grandiosa consciência social.

- Hipocrisia é a sua de se isolar diante da realidade do cara enquanto sua situação econômica é confortável. Fecha os olhos pra tudo que há em volta e acha que qualquer um da classe média que se preocupa com o pobre está sendo hipócrita e falso, porque tem uma boa situação financeira e não faz nada efetivo pelo cara.

- E faz?

- Não sei se faz, mas pelo menos pensa! Aí que está a diferença. É muito confortável sua postura fria e supostamente sincera de burguês assumido. Usa essa incrível “sinceridade” para não precisar fazer uma coisa que é mais chata: encarar o fato de que enquanto você ta bem tem uma porrada de gente fudida. Aí é mais fácil acusar o cara que se preocupa com isso de esquerdinha hipócrita. Você é tão cego que acha impossível outra pessoa se preocupar realmente com essas questões.

- E você faz alguma coisa pra mudar essa desigualdade toda ou age do mesmo jeito que eu no dia-a-dia?

- A gente só tem dezoito anos. Por enquanto não, mas tenho certeza que vou fazer muito mais do que você. É impressionante. Você tem o típico pensamento ignorante e comodista de que “não adianta nada eu fazer isso sozinho, porque não vai mudar nada, mesmo.”

- Continuo te achando um hipócrita.

- Eu também continuo te achando um hipócrita. E se eu sou, pelo menos minha hipocrisia pode fazer algum bem pra sociedade. E a sua?

- Supondo essa hipocrisia, ela faria muito bem pra mim. Agora a sua não vai fazer bem nem pra você nem pra sociedade, porque esses ideaizinhos de botiquim não vão mudar porra nenhuma. Acorda.

- Acorda porque o dia em que você estiver na merda vai precisar de um cara com ideaizinhos de butiquim, porque os outros que pensam como você vão estar mais preocupados com seus próprios problemas e cagando na sua cabeça.

- Amizade não se mede por consciência social.

- Mas solidariedade sim.

- Chega, cara.

- Por quê?

- Porque não adianta! A gente não vai se entender! Eu vou achar eternamente que o que você fala não passa de merda.  

- Então acho melhor você ir lá na cara do faxineiro é falar que ele é um babaca porque não te deixa beber água.

- Talvez seja melhor você ir abraçá-lo e dizer que sente muito pela cruel situação que a sociedade lhe impôs e que isso justifica o fato dele ser um babaca.  

- É o que eu vou fazer sim.

- É, eu também.

- Sem hipocrisia.

- Sem hipocrisia.